Reportagem: Miguel Sá | Fotos: Felipe Diniz | Stephanie Hahne
Há vinte anos, a cantora Pitty lançava o que foi o grande fenômeno do rock brasileiro pós anos 1990: o álbum Admirável chip novo. O trabalho, produzido por Rafael Ramos para a Deck, foi lançado em abril de 2003 ganhando disco de platina com a venda de cerca de 250 mil cópias de CD, a mídia física que era o standard da indústria fonográfica da época. O álbum também foi muito elogiado pela crítica e concorreu, em 2004, ao Grammy latino na categoria Melhor Álbum de Rock Brasileiro.
Rafael Ramos conta, em entrevista exclusiva para a Revista Backstage, como está sendo preparado o lançamento da gravação da turnê ACNXX, em comemoração aos 20 anos de Admirável chip novo. O produtor falou sobre mudanças tecnológicas, as transformações no mercado fonográfico e sobre o que usou na mixagem do trabalho que deve ser lançado no início de 2024.
Rafael Ramos | Foto: Felipe Diniz
O Admirável chip novo é um álbum fundamental daquele momento da indústria fonográfica brasileira. Um trabalho que vendeu muito em uma época em que o rock talvez já não fosse tanto a ponta de lança no mercado e tinha o DVD começando a despontar. O que mudou nestes vinte anos?
O conteúdo vai ter o seu valor de qualquer maneira, independente de qual seja a plataforma. O público sempre vai estar ávido por ouvir e assistir um show do seu artista, mas a mudança é muito radical. Então é isso: você começa ali com Pitty vendendo CD. A internet não era exatamente uma novidade, mas tudo ainda era muito novo. A Pitty lançou o primeiro disco antes do YouTube surgir.
Foi no momento do auge da pirataria, não?Aquela coisa de Napster...
No Brasil, mais do que o Napster, a questão era a pirataria física mesmo. Era o CD vendendo no camelô praticamente junto do que chegava da fábrica. Logo depois do lançamento do Admirável..., depois que o disco fez história e ela estava em uma turnê quente, fizemos um DVD documentário entendendo que era um formato bom para apresentar o artista e mostrar o conceito dele. Foi o Admirável vídeo novo, que vendeu mais de 100 mil cópias. No Anacrônico (segundo álbum) ainda tinha o o CD. Teve ainda um lançamento de Dual Disc, com o mercado digital aquecendo, mas tudo ainda era com mídia física. Do quarto para o quinto disco (respectivamente Setevidas e Matriz) ela passou cinco anos sem lançar. Aí é que acontece uma grande mudança mesmo: a migração total para o digital, com uma nova geração consumindo e vários outros estilos de música ficando grandes no Brasil e no mundo. O Hip Hop cresceu muito, o sertanejo no Brasil já vinha crescendo, mas deu um boom chegando a lugares altíssimos. Então Pitty vai se adaptando até chegar nesse momento pós-pandemia agora. No lado do público você vê uma união de gerações que descobriram a música dela indo ao show com o primo, com a irmã mais velha, com a tia, com o amigo... Então você vê gerações juntas fazendo esse público dela se multiplicar de uma forma impressionante. Desde o início do ano temos vivido shows muito especiais. No Lollapalooza, nunca vi tanta gente tão cedo. Um mar de gente. No The Town também foi um momento lindo. E ela já estava vindo do Pitty Nando. Esse show [em comemoração ao Admirável chip novo] é o registro de um ápice de um de um ano legal e de uma história que vale a pena ser contada e registrada.
Rafael Ramos | Foto: Felipe Diniz
E como foi a gravação do show comemorativo aos 20 anos de Admirável chip novo?
Gravamos em Salvador e estamos aqui mixando. O show que é dividido em três atos: no primeiro, toca o Admirável chip novo na íntegra, celebrando 20 anos desse trabalho que é o grande motivador da turnê. Depois vai para o segundo ato que passa pelo disco Espelhos, que foi lançado neste ano de 2023 a partir de gravações feitas em 2004 que resultaram em um DVD que só tinha um pedacinho de alguns covers e versões feitas com amigos. Esse álbum foi lançado também dentro das comemorações do Admirável... Depois tem um terceiro ato repassando alguns sucessos dos outros riscos. Esse passa pelo Setevidas (2014), pelo Anacrônico (2005) e pelo Chiaroescuro (2009).
Foto: Stephanie Hahne
E quando vocês começaram a alinhar esse projeto? Quanto tempo demorou?
Por volta de novembro do ano passado estávamos fazendo uma reunião e veio essa surpresa [de pensar em uma comemoração dos 20 anos do Admirável chip novo] na reunião. Não exatamente uma surpresa, porque a data é essa mesmo. A Pitty tava bem forte na estrada fazendo show com o Nando Reis [por conta do PittyNando] e as pessoas estavam falando muito para ela que era hora de fazer. A partir daí começamos a desenhar o que poderia ser lançado, que tipo de ação poderia ser feita e o que era para ser só um bolinho virou um ano de comemoração. Remasterizamos o disco original em Dolby Atmos e todos os clipes para HD. Cavamos no baú para soltar as músicas completas que estão no DVD Admirável vídeo novo (2004) [o álbum Espelhos – versões completas de Admirável vídeo novo], com participações de B Negão, Cannibal e Nancyta, que mandamos para o Jackie Endino fazer uma nova mixagem, em Seattle. Esse foi um disco gravado ao vivo e gravado em estúdio com um trio, composto pelo Peu (falecido em 2013, na guitarra), que ainda era vivo, o Joe Gomes (baixo) e o Duda Gomes (bateria). A banda estava arrasando nessas gravações e achamos que era maneiro soltar agora. Recentemente lançamos também o Admirável chip novo (re)ativado, no qual trabalhamos de forma totalmente silenciosa durante o ano e soltamos meio de surpresa agora, no inicio de outubro. Nesse álbum, outros artistas (Pablo Vittar, Criolo, Emicida, Tropkilazz, Sandy, MC Carol, Ney Matogrosso, Tuyo, Céu, Marina Peralta, Supercombo, Rockers Control e Planet Hemp) interpretam o Admirável chip novo. São artistas de um universo que Pitty aprecia e tem uma certa afinidade.
O guitarrista Martin Mendonça, o baixista Paulo Kishimoto (em pé,de camisa listrada) e o baterista Jean Dolabella no camarim. | Foto: Stephanie Hahne
Você chegou a participar da construção da turnê, montagem de repertório, ou só da gravação?
Não. A turnê foi montada por Pitty com a equipe dela de estrada. Eu vi o lançamento do show, que tem a minha voz falando, porque ela fez uma brincadeira regravando as nossas ligações lá no início da carreira com ela decidindo como ia trabalhar, com ela mandando a demo... Então eu até apareço no show com a minha voz, mas não participei de nada da produção além de gravar o meu áudio lá para ela. A Pitty queria revisitar o álbum dessa forma que vemos muita banda gringa fazendo, que é tocar o disco na ordem para as pessoas e depois desenvolver o show como quiser. Por isso ela criou os três atos. Mas desde o início do ano sabíamos que teria um show em praça pública em Salvador. Eu fui assistindo e conhecendo o repertório e fomos nos estruturando para quando acontecesse esse show. Soubemos com um mês de antecedência. Foi um show no Rio Vermelho. Um lugar que a Pitty viveu um grande parte da vida musical dela. Além disso tinha o lance de ser aberto para o público e ser acessível a toda Salvador. Foi ainda gente de Fortaleza, Natal... De tudo, quanto é lugar. Foi realmente uma noite muito especial.
Rafael Ramos | Foto: Felipe DIniz
Como foi a gravação?
Cheguei dois dias antes do show [ que seria no dia 17 de setembro ]. Tinha um palco que era uma ação da prefeitura de Salvador e já estava montado ali no Rio vermelho desde sexta-feira. O show foi num domingo e eu cheguei na sexta-feira para ver isso. Chegamos com o diretor de vídeo e o diretor técnico e já fomos mapeando o que precisaríamos fazer. O palco teve que ganhar uma maquiadinha nas laterais e fomos trabalhando dentro do tempo que era permitido dentro de uma parceria muito grande com a prefeitura de Salvador e com a Saltur (Empresa Salvador Turismo) que deram todo o suporte. A Pitty tocou em Recife no sábado. O show terminou as 3:30 da manhã lá e parte da equipe veio de ônibus para Salvador com o equipamento. Ela pegou um voo com a banda no início da tarde antes do show, que começou às sete da noite. Tivemos muito pouco tempo. O grande lance é que ela tá fazendo essa turnê com o mesmo equipamento para o Brasil inteiro, então já vinhamos gravando algumas apresentações, com tudo feito via cabo de rede, gravando no Reaper mesmo. Então se um microfone interrompesse, poderia pegar material de um outro show. Parte do show da Pitty é clicado e parte não é, mas você tem as fotografias. Às vezes precisa de uma nota e, se já tem material, não precisa ter aquela obrigação de agendar um estúdio para consertar. Você consegue trabalhar com material já gravado.
Então conseguiu trabalhar de uma forma que já tem um material disponível para, eventualmente, resolver algum problema na mixagem...
Também quisemos ter mais som de público. Então colocamos quatro microfones a mais de ambiência do que eles já usavam normalmente na turnê. Levamos dois técnicos supervisores só para ficar de olho. Ficamos com o sistema oficial no monitor que já vinha gravando e um outro em backup no P.A. Fizemos uma monitoração para saber se tava tudo vindo certinho e foi um sucesso. Hoje temos essa facilidade e sempre podemos entrar no estúdio, esquentar num pré-amplificador de novo e fazer tudo o que já se fazia gravando em uma unidade móvel. Depois regravamos alguns backings dos meninos. Eles gravaram em casa mesmo por questão de vazamento de prato [nos vocais] porque o palco era pequeno.
O coordenador de produção Bruno Pegos acerta os ponteiros com o técnico de P.A.de Pitty Alejandro Marjanov. | Foto: Stephanie Hahne
Indo então para a mixagem: nesses 20 anos também aconteceram mudanças estéticas até pelo tipo de mídia em que a música é veiculada. Como você mixa para streamings? É diferente de como você mixava para o CD?
Quando está mixando, você mixa para a sua monitoração. Você faz um bounce, ouve no carro, na sua referência e vai testando para chegar no som. Sempre mixamos pensando em tirar o som bom. Passamos por uma experiência muito boa com o PittyNando. Então você compara com o que ouviu no estúdio, vê como foi o último disco, lança o single e vai pegando o jeito. As pessoas vão ouvir mesmo é no fone ou na caixinha Bluetooth. É um outro resultado, é uma outra qualidade que as pessoas ouvem hoje, longe de ser a forma mais perfeita de se ouvir, mas eu acho que a música continua ali. Trabalhamos o video de uma forma que a pessoa tenha muita clareza e muita qualidade no celular dela, mas também grandão numa TV. E no áudio, queremos que fique bem confortável gostoso e bem representado nos fones.
Jean Dolabella na bateria. | Foto: Stephanie Hahne
Na mixagem, você ainda usa console no estúdio? Como você faz?
Está sendo mixado aqui no estúdio (Estúdio Tambor) pelo engenheiro de som Jorge Guerreiro, que trabalhou comigo captando som para a própria Pitty, Dead Fish e Cachorro Grande. Para o rock eu trabalho muito com o Jorge e estamos mixando no Pro Tools passando pela mesa SSL Matrix. Nos canais da SSL, que tem 16 canais analógicos, abrimos a bateria, o baixo, a guitarra vozes e backings, cada um [dos elementos] no estéreo e mais o canal de efeitos. Abrimos tudo isso e passamos pelos equalizadores da EPI 500B, de 4 bandas, porque às vezes até puxamos um agudinho, cortamos um grave ou um médio grave, mas mesmo não atuando passamos por eles para dar uma esquentada analógica. Vemos vantagem em ter esse adicional analógico, mas não é nada que a gente fique preso também. No Pro Tools está em 24 bits, 96 kHz. O Reaper grava assim e não tem problema de memória. Depois de passar pela Matrix, temos um insert no master passando pelo Fatso (plugin), que sempre usamos para os agudos porque eu acho que ele trabalha muito bem nisso. Já usamos o Fatso atuando bem pouquinho desde a primeira levantada. Também usamos alguns efeitos de reverb e delay no Pro Tools e fora, no paralelo, a Lexicon 480. Estamos em um ponto que o som já está tirado.
Algo mais que gostaria de comentar?
Este é um trabalho muito marcante para mim. Foi o primeiro golaço de uma parada que eu fiz desde o início. A Pitty está com a gente até hoje, então é uma relação que ultrapassou o nível profissional, transcendeu isso aí. Foi legal ter captado esse momento que teve essa onda mágica mesmo, um momento de realização com a Pittty voltando para casa - como é que você faz rock na Bahia que é a terra do Axé? - e vemos todos esses preconceitos sendo derrubados, com gente para caramba na rua. Foi incrível. Esperávamos muito menos gente do que pintou. Achávamos que iam ser 15 mil e foram 40, 50 mil. Foram 21 músicas. O show tava super na agulha. A Pitty quis tocar, na gravação, todas as que estavam ensaiadas. A banda (Martin Mendonça na guitarra, Paulo Kishimoto no baixo e Jean Dolabella na bateria) está tocando como nunca. Aliás, no palco a gente tinha um amplificador Vox e um Fender. Essa combinação já rolou no PittyNando e tinha funcionado muito bem.
Leonardo Costa, designer responsável pela parte gráfica da Revista Backstage, conferiu o show da turnê ACNXX no Rio de Janeiro, e conta para os leitores como foi
A comemoração de 20 anos do primeiro álbum da banda Pitty, trouxe de volta a raiz mais roqueira da baiana mais arretada que conhecemos. Após uma volta em diversos ritmos e experimentações, Pitty volta ao Rock ‘n’ Roll, pra um show comemorativo que explora todas as músicas do seu primeiro álbum, Admirável chip novo, lançado em maio de 2003. O álbum trouxe Pitty ao mainstream com o hit Máscara, cujo clipe passava exaustivamente na extinta MTV Brasil, impulsionando ainda mais o sucesso da música e da banda.
Foto: Leonardo Costa
Intitulado ACNXX, o show começa com uma encenação em áudio, de uma ligação de Pitty, do orelhão a cobrar, para avisar ao produtor, Rafael Ramos, que enviou uma fita demo de seu primeiro álbum enquanto o telão mostra uma foto da sua silhueta sendo “recarregada”. Neste momento a banda abre com Teto de vidro, e logo na sequência toca a faixa-título Admirável chip novo, tocando exatamente a mesma sequência do álbum lançado há 20 anos pela Deck Disk. Até mesmo as baladas Equalize e Semana que vem não foram esquecidas, afinal fizeram tanto sucesso quanto as mais pesadas.
Foto: Leonardo Costa
Antes de Máscara, um novo áudio ecoa nos P.As mostrando uma conversa de Pitty sobre a música ser o primeiro single com várias argumentações contra, mas com a cantora seguindo firme e dizendo que essa será sim a primeira música de trabalho do álbum. O setlist do álbum se encerra com a já citada Semana que vem, mas o show continua com a banda apresentando mais algumas outras músicas da carreira, como Sete vidas, Memórias, Na sua estante e Me adora, além de covers de outras bandas como Velvet Underground, Shocking Blue, Bad Brains etc.
Foto: Leonardo Costa
O show é uma celebração de um setlist atemporal que segue perdurando esses 20 anos e que de fato merecia uma comemoração desse nível. Não bastasse apenas o show, Pitty também aproveitou a data para mais dois lançamentos: o álbum de covers com o nome de Admirável chip novo (re) ativado com suas músicas interpretadas por nomes como Ney Matogrosso, Emicida, Planet Hemp, Criolo, Sandy, Pablo Vittar e outros, e o álbum Espelhos, onde ela faz os covers de bandas como Beatles, Nirvana, Queens of the Stone Age, e Girls Just Wanna Have Fun, da Cyndi Lauper, abrindo o álbum. Músicas que ela interpretava trechos dentro de Máscara nas suas turnês há 20 anos.