O avanço acelerado da inteligência artificial (IA) gera debates por conta dos impactos econômicos, jurídicos e éticos. No Brasil, o Projeto de Lei 2338/2023 surge como resultado da necessidade de regulamentação da IA. O PL traz discussões internacionais ao país e estabelece diretrizes para o uso responsável da tecnologia. Um dos temas mais sensíveis dessa regulamentação envolve os direitos autorais e o impacto das ferramentas de IA na criação e distribuição de conteúdo.
A construção do PL envolveu consultas públicas com especialistas em tecnologia, direito e ética, participação de empresas, organizações da sociedade civil e representantes de setores impactados. Por fim, mais de 600 criadores e entidades ligadas à indústria cultural apoiaram o PL. Criadores da área musical como Roberto Frejat , Milton Nascimento, Caetano Veloso, Zeca Pagodinho, Paula Fernandes, Marina Sena, Otto, Michael Sullivan, a empresária Paula Lavigne e Marisa Monte, entre diversos outros, participaram ativamente da mobilização. Entre os tópicos do projeto, está a proteção de direitos autorais, garantindo remuneração pelo uso de obras em IA comercial.
No entanto, ainda passando pelo Congresso Nacional, o PL se apresenta mais como um debate em progresso na sociedade do que uma resposta pronta. Por isso a Revista Backstage traz as respostas de questões enviadas ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) e uma entrevista com a advogada Bruna Campos, com ampla experiência na indústria musical e assessoria jurídica de artistas, ambas referentes ao uso da Inteligência Artificial e os impactos nos direitos autorais.
Clique no link abaixo e leia as entrevistas completas:
A Revista Backstage enviou, por e-mail, questões relativas à Inteligência Artificial e direitos autorais respondidas por diversos setores do ECAD. O Escritório responsável pela distribuição dos direitos autorais no país começou a resposta com um texto de ´posicionamento a respeito:
Posicionamento Ecad
O Ecad é uma instituição sem fins lucrativos, prevista em lei, e que existe para viabilizar o licenciamento dos direitos autorais de autores e artistas, nacionais e estrangeiros, para todos aqueles que utilizam músicas em suas atividades. Ao exercer a sua função, o Ecad garante que a atividade cultural e criativa seja sustentável e que os usuários que utilizam músicas estejam em conformidade com a legislação de direito autoral.
Para tanto, a jurisprudência em vigor no Brasil garante ao Ecad o direito de cobrar os direitos autorais, independentemente da prévia identificação das obras que estão sendo executadas, dos seus autores, músicos e intérpretes. Dessa forma, viabiliza-se o exercício do direito autoral e isso contribui para o sustento de milhares de artistas e criadores no Brasil e no exterior.
As ferramentas de Inteligência Artificial (IA) têm sido utilizadas por profissionais da música como instrumentos para a melhoria das suas criações. Em alguns casos, essas ferramentas podem ser também utilizadas para gerar novas criações, que reproduzem ou se inspiram em criações preexistentes. A produção de músicas por meio dessas ferramentas somente é viável porque milhares de obras musicais e fonogramas foram utilizados para o treinamento dos modelos de IA, embora não haja uma legislação que permita esse treinamento. Nesse contexto, o Ecad mantém a cobrança dos direitos autorais mesmo que haja ou não a utilização de ferramentas de IA para a produção musical.
Quais lacunas legais existem atualmente no Brasil em relação à proteção de direitos autorais no contexto da IA?
No Brasil, a Lei de Direitos Autorais (9.610/98) protege os direitos dos autores e abrange a execução pública de música, mas não especifica a questão da inteligência artificial, que é uma inovação recente. As plataformas de IA generativa já se utilizaram de milhares de obras e fonogramas para o treinamento dos seus modelos de IA. Contudo, a legislação não estabelece obrigações específicas para que essas empresas sejam transparentes e informem ao público e aos titulares de direitos em geral, sem restrições e de forma ampla, quais foram as obras e fonogramas utilizados para o treinamento, e de onde eles foram obtidos. Essa obrigação de transparência seria fundamental para que os titulares de direitos autorais pudessem negociar a justa licença e remuneração pela exploração das suas obras, fonogramas e interpretações musicais.
Do ponto de vista do ECAD, o PL 2.338/2023 dá conta das questões que estão surgindo em relação aos direitos autorais na música? Haveria algo a ser aperfeiçoado que já conseguem identificar?
O PL 2.338/2023 contempla pontos importantes sobre o tema e sobre a execução pública musical no contexto digital, mas ele ainda não aborda de forma clara e detalhada algumas questões que envolvem o uso de obras musicais em treinamento de IA, como a transparência. Faz-se necessária uma revisão sobre a remuneração e a autorização ou proibição devida e irrevogável de obras e fonogramas por parte dos compositores e artistas para que não restem dúvidas de que apenas eles podem conceder autorização sobre suas criações. Além disso, essa autorização deve ser prévia para que os sistemas possam seguir com seus treinamentos.
Como o PL 2.338/2023 se alinha às regulamentações internacionais?
Ainda não há um tratado internacional sobre IA. O PL 2.338/2023 aproxima-se da regulação da União Europeia, tanto em relação a disposições da Diretiva 2019/790 como do Regulamento de IA da UE, ao prever um modelo de opt-out, ou seja, o direito de autores e titulares se oporem a que as suas obras/performances sejam utilizadas para o treinamento.
Há espaço para criar um tratado internacional específico sobre IA e direitos autorais?
Sim. A expectativa é que acordos internacionais possam criar regras e direcionamentos sobre as questões pendentes que envolvem a IA.
O ECAD está em contato com entidades similares no mundo para desenvolver ferramentas para lidar com a I.A.?
A gestão coletiva da música no Brasil está sempre alinhada e em contato com as entidades congêneres de direitos autorais de música de outros países para acompanhar as questões que envolvem os interesses dos compositores e artistas da música. O Ecad faz parte da gestão coletiva da música ao lado sete associações de música (Abramus, Amar, Assim, Sbacem, Sicam, Socinpro e UBC), que nos administram.
A proposta de manter registros do uso de obras protegidas pelas plataformas de IA é viável tecnologicamente e juridicamente?
Defendemos que haja uma identificação de obras criadas integralmente por IA, e que essa identificação seja conhecida dos consumidores, e devidamente "tageada". Contudo, para tanto, é necessário haver previsão legal estabelecendo a obrigatoriedade dessa identificação e a padronização técnica para que ela seja adotada.
A tecnologia atual é capaz de rastrear quais obras específicas foram utilizadas no treinamento de um modelo de IA?
Sim, já existem softwares que identificam a utilização de ferramentas de IA na produção musical.
O ECAD já tem sistemas informatizados que fazem a monitoração de execução pública, correto? Quais são esses sistemas? Essa experiência ajudaria na monitoração do uso de obras para treinar modelos de IA com obras protegidas por direitos autorais?
Com tecnologia de ponta e softwares próprios, o Ecad utiliza metodologias distintas de identificação musical para os diferentes segmentos e para monitorar o que foi tocado em estabelecimentos comerciais, cinemas, shows, rádios, tvs, plataformas de streaming e outros canais e espaços, que usam música publicamente, com o objetivo de garantir a arrecadação e a distribuição dos direitos autorais de execução pública. Por exemplo, em rádio e TV, o Ecad utiliza a tecnologia CIA (Captação e Identificação Automática) para fazer a gravação das execuções musicais, que são o Ecadtec CIA Audiovisual e o Ecadtec CIA Rádio. Nesses segmentos de TV e de Rádio também são utilizadas planilhas de programação enviadas pelas emissoras, que passam por um processo de matching de dados. No streaming, as plataformas enviam ao Ecad o relatório de uso com as obras musicais executadas em determinado período e, com base nessas informações, é feito um matching automático com o banco de dados. A instituição tem também o Ecadtec CIA Execução ao Vivo, que é um software para a identificação automática de músicas que são tocadas ao vivo. Mas uma questão importante, nesse momento, é a regulamentação para todas as questões que envolvem a utilização de obras protegidas e, que, certamente, englobará questões de monitoramento.
A IA pode ser usada para fazer esse rastreamento? Já faz parte de algum processo do ECAD relacionado a direitos autorais?
No Ecad já utilizamos sistemas e tecnologias baseadas em IA para otimizar os processos de arrecadação e distribuição de direitos autorais de execução pública de música.
Como os conceitos de obra derivada e reprodução se aplicam aos resultados gerados por IA com base em materiais protegidos?
As plataformas de IA generativa se utilizam de milhares de obras para o treinamento e aprendizagem do seu software de inteligência artificial. Há assim uma exploração de obras musicais e fonogramas para que o software de IA seja treinado e possa emular a criação humana. O resultado produzido pelo software ao emular a criação humana pode ser semelhante, parecido ou conter elementos de obras e fonogramas pré-existentes, mesmo que em fragmentos. Desta forma, ao utilizar obras e fonogramas para o treinamento do modelo de IA há, no mínimo, uma reprodução de trechos de obras e fonogramas; ao gerar novos conteúdos que emulam a criação humana, e dependendo do resultado, o software pode transformar criações pré-existentes em novas obras, e é neste sentido que se fala em derivação, ou na criação em tese de obras derivadas.
O "direito de citação" se aplica ao uso de fragmentos de obras protegidas no treinamento de modelos de IA? Por quê?
Não se aplica porque o direito de citação está vinculado ao objetivo da reprodução, e esse objetivo precisa ser comentar, estudar ou criticar uma obra pré-existente ou fonograma.
Quais os desafios em implementar um sistema de distribuição justo para compensar criadores pelo uso de suas obras por sistemas de IA?
A gestão da coletiva da música no Brasil já tem um sistema de arrecadação e distribuição de direitos autorais de execução pública justo, estabelecido e reconhecido internacionalmente. O que se faz necessário é que a nova regulamentação aborde todos os temas para garantir a remuneração e todos os direitos dos autores.
Que incentivos poderiam ser criados para fomentar o uso ético da IA na música?
O uso ético da IA pode ser enxergado sob dois ângulos. O primeiro é a devida autorização e compensação aos criadores pela criação de novos conteúdos baseados nas suas obras e performances. O segundo é assegurar que haja uma diversidade no universo de obras e fonogramas utilizados para o treinamento de modelos de IA, de tal maneira que os resultados não sejam enviesados por uma cultura específica, ou mesmo por um único gênero musical, ou pelas músicas de um único país.
Entrevista com Bruna Campos
Bruna Campos, advogada especializada em direito-autoral. Foto: divulgação
De que forma a falta de um "direito de remuneração" para autores impacta a sustentabilidade econômica dos criadores musicais do ponto de vista do ECAD?
Sem a remuneração devida, o autor perde a oportunidade de receber os valores a que tem direito pela execução pública de sua obra e que é garantida pela legislação brasileira. Isso pode gerar um impacto negativo na cadeira produtiva da música.
Há ferramentas jurídicas que permitem que compositores possam recusar, de forma antecipada, o uso de suas músicas em treinamentos de IA?
A maior de todas: a lei de direitos autorais. Teoricamente, a simples recusa do autor deveria bastar. Como ele não está sequer sendo consultado, uma notificação do autor para a empresa dizendo que o uso de suas obras não está autorizado também deveria bastar. Mas a maioria dessas empresas não tem sede no Brasil. Parece que todo esquema é feito pra dificultar que o autor não consiga agir em interesse próprio.
Como um compositor pode se proteger legalmente para evitar que suas músicas sejam usadas por sistemas de IA sem autorização?
Tendo em vista que a música, mais cedo ou mais tarde, vai será publicada na internet, não vejo muito o que o compositor possa fazer pra evitar isso.
Quais os benefícios que o PL 2338/2023 pode trazer para os criadores?
Temos uma legislação maravilhosa, que já abraçaria a questão da Inteligência Artificial no sentido de que os autores tem de ser consultados. Se usar uma obra sem autorização há inclusive sanções penais no nosso código. O nosso maior problema não está em não ter uma lei que preveja a proteção. Enquanto tiver essa mentalidade de que música é só diversão pode vir a melhor lei do mundo, mas não vão respeitar essa legislação, então não sou muito otimista quanto a projetos de lei.
O treinamento de modelos de inteligência artificial generativa com obras musicais protegidas por direitos autorais podem ser considerado uma violação do direito de reprodução?
Com certeza. Porque a lei determina que a autorização para qualquer tipo de uso deve ser solicitada e negociada antes, inclusive treinamento de máquina.
É possível exigir que plataformas de IA obtenham uma licença obrigatória para treinar seus modelos com obras protegidas?
É o que as entidades que representam autores estão tentando no mundo todo, além das gravadoras e editoras de música. Não deveria ser necessária essa briga porque as leis existentes já determinam isso. Mas as empresas de IA alegam que as músicas usadas estão na internet e tudo que está na internet pode ser usado indiscriminadamente.
As empresas de IA podem ser responsabilizadas pelos conteúdos musicais gerados por seus modelos se houver violação de direitos autorais?
É o que as entidades do mundo todo estão tentando, trazer responsabilidade para essas empresas que usam conteúdo protegido sem autorização, além de não terem negociado remuneração justa aos criadores. Deveriam ser responsabilizadas, mas ainda não está acontecendo.
Se músicas de um determinado autor foram utilizadas sem autorização para treinar um modelo de IA, já há meios legais disponíveis para reivindicar compensação?
As entidades que representam autores estão tentando negociar essa compensação, mas as empresas de IA não se mostram muito interessadas em resolver essa questão.
O direito de citação pode ser usado para justificar o uso de músicas no treinamento de IA sem autorização?
Para citar obras dentro de novas obras, é necessária autorização prévia. Então não, nada justifica o uso de uma obra protegida sem autorização.
Levando em conta que a I.A. é treinada a partir das criações humanas, é possível dizer que existe música criada por I.A.?
Na minha opinião, não. Criação é algo inerente ao ser humano, é necessário sensibilidade, intuição, sentimento. A máquina gera conteúdo conforme sua base de dados.
O conceito de "uso justo" ou "fair use" pode ser aplicado no Brasil para justificar o uso de músicas protegidas no treinamento de IA?
É exatamente a justificativa que as empresas de IA usam. Mas obras inteiras estão sendo usadas, não apenas trechos, então não há que se falar em fair use.
Já existe algum precedente judicial, no Brasil ou no exterior, em que um compositor tenha sido indenizado pelo uso indevido de sua obra por sistemas de IA?
Não. Mas há casos de músicos condenados por arrecadarem dinheiro com músicas criadas por IA.
No caso de criações feitas por I.A. nas quais ela simula a voz de um determinado artista, ou o estilo de um instrumentista, há a possibilidade de pagamento de direitos conexos?
Só há pagamento de direitos conexos se um fonograma for usado. A dificuldade hoje está em se provar que o fonograma foi usado.
Se uma pessoa registrar uma criação de I.A. como sendo dela pode ser considerado fraude?
Ainda não porque ainda não temos uma lei que diga isso. A nossa lei por enquanto diz apenas que conteúdo de máquinas não recebem a proteção da lei de direitos autorais. Mas a partir do momento que uma pessoa omite esse fato e registra a música em seu nome, é difícil controlar que por trás dessa “obra” existe um criador pessoa física.
Em uma peça criada por I.A., é possível identificar algo como o fragmento de uma composição preexistente, por exemplo, para cobrar direitos?
Já está acontecendo. Agregadoras e o próprio YouTube, através da ferramenta de Content ID, têm conseguido identificar trechos de outras gravações nas músicas geradas por IA.
Quais são as possibilidades de remuneração por I.A.?
Essa é a pergunta de milhões. Pela complexidade do negócio e pela dificuldade em identificar o uso de uma obra específica, a discussão de como remunerar pode não ter resposta tão breve. Acredito que vai demorar um tempo para que a questão da remuneração seja resolvida. Primeiro é preciso entender que catálogo está sendo usado.