Tecnologia e autenticidade: Elis cantando cada vez melhor
23/05/2022 - 14:12h
Atualizado em 23/05/2022 - 15:56h
Reportagem: Miguel Sá | Fotos: Divulgação, Arquivo, Atelier Jane Rafaela
Há 46 anos atrás, Elis Regina gravava e lançava o álbum Falso Brilhante, relançado em março deste ano também no formato de áudio imersivo. O trabalho era o registro, em estúdio, do espetáculo homônimo encenado no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, entre o final de 1975 e fevereiro de 1977. Das 42 músicas originais do espetáculo, foram selecionadas 10 para fazer parte do LP, que era o formato final dos produtos musicais na época. Falso Brilhante se tornou um dos trabalhos de maior sucesso da cantora, fazendo de Como nossos pais, Velha Roupa Colorida e Tatuagem clássicos absolutos da música popular brasileira e atravessando quase cinco décadas como um álbum fundamental.
Trabalhar um clássico trazendo o áudio dele para os tempos atuais, isto sem interferir nas escolhas artísticas feitas na época: esta foi a responsabilidade do produtor João Marcello Bôscoli e do engenheiro Ricardo Camera ao traduzir o disco para os tempos das plataformas de streaming de música e do áudio imersivo. Isto significa lidar com os parâmetros técnicos das diversas plataformas – Spotify, Deezer, Youtube, etc. – do já testado, aprovado e “vintage” CD e as novas possibilidades do novo som imersivo que não depende do número de caixas pelo qual será emitido, e sim de algoritmos que passam a mesma sensação da espacialidade por um fone ou 12 caixas de som.
João Marcello Boscoli é produtor musical e filho de Elis Regina, mas isto está longe de significar que pode mexer nos trabalhos da cantora sem critério. “Nós não apagamos o áudio original para ser outra coisa. Não alteramos a relação entre os instrumentos. A questão é que tem uma necessidade de adequação desse áudio. Como você vai ouvir ele através do tempo? No momento em que lançou o estéreo, o que foi lançado em mono foi deixado para trás? Não, você tenta adequar. Damos um tratamento contemporâneo”, explica.
João Marcello Bôscoli
Para João Marcello, trazer o som de Falso Brilhante para padrões contemporâneos significou, por meio das ferramentas de áudio imersivo, diminuir – e até acabar – com a distância que havia entre o resultado final da mixagem dentro do estúdio e o que era definitivamente ouvido pelo consumidor final nos LPs e K7 da época. Quando acontecia o processo de corte do vinil – similar à masterização no CD – era necessário atenuar, ou até mesmo cortar, as pontas dos graves e dos agudos e diminuir a faixa dinâmica da execução musical para que o som pudesse “caber” nas possibilidades físicas de reprodução de frequências e dinâmica do vinil. “Você pode usar os elementos do áudio artisticamente, mas quem está criando a obra é que decide isso. Então qual foi a nossa viagem? É na parte de registro de uma determinada obra artística em uma mídia: quanto menos aparecer o som do CD, o som do vinil, o som da fita no resultado final do áudio, melhor”.
João Marcello teve a parceria do responsável técnico do estúdio Na Trama / Cena e engenheiro de som Ricardo Camera. Ricardo já vinha estudando as possibilidades do áudio imersivo. Desde que o antigo estúdio da Trama mudou em 2018 para o estúdio Na Cena e os equipamentos foram trazidos por João Marcello, os dois vem conversando sobre as possibilidades do formato. “Mostrei algumas coisas no Tidal, como a remixagem do John Lennon feita nesse formato (o clássico Imagine está entre os álbuns remixados no formato) e o João ficou muito entusiasmado. Com a assessoria do meu ex-assistente, hoje um grande engenheiro de áudio e amigo Toco Cerqueira, conseguimos contato com a Dolby e construímos essa parceria”, se entusiasma Ricardo. Ricardo e João Marcello trabalharam nos estúdios Na Cena / Trama e da Dolby Brasil. O projeto também teve a assessoria de Daniel Sasso, do estúdio de som para cinema JLS, e do consultor da Dolby para a América Latina Giovanni Asselta.
Ricardo Camera
O resultado inicial das conversas entre João e Ricardo foi uma primeira remixagem apenas da música Como Nossos Pais. Esta primeira experiência foi um pouco mais fundo nas possibilidades do áudio imersivo que a atual. “Na segunda mixagem do Falso Brilhante os elementos ficaram mais estáticos. As coisas estão posicionadas como o João nos orientou para o fã ouvir o disco, já lançado há tanto tempo, com uma sonoridade mais nova, mais moderna, com os ranges de frequência maiores e a sensação da profundidade”, detalha Ricardo.
Áudio imersivo
Durante as décadas de 2000 e 2010, tentou-se, de todas as formas, implantar formatos que pretendiam trazer uma sensação de imersão no áudio, mas o fato de um sistema em 5.1 (no qual o áudio do DVD e do blu-ray eram disponibilizados) exigir um posicionamento determinado tanto das caixas como do ouvinte para conseguir o efeito desejado não ajudou a consolidação do formato. A diferença entre o formato atual e os antigos é que a mixagem não leva a posição das caixas em consideração, e sim o objeto. Seja com um soundbar, 12 caixas de som ou um fone o efeito imersivo será sempre o mesmo em qualquer posição em que o ouvinte estiver. “Os formatos anteriores exigiam que se estivesse em uma condição específica, no meio de uma sala, com várias caixas, e talvez por isso tenha acontecido o insucesso na massificação desses formatos. Em Atmos, se estou em uma sala como a que estamos montando aqui, no NaCena / Trama, que é 7.1.4, com um surround, sete caixas na horizontal, quatro caixas no teto eum subwoofer, é uma coisa maravilhosa. Mas, ao mixar em Atmos, ele já deriva para o 7.1, o 5.1, o estéreo - que é muito refinado por conta do downmix do Atmos - e o binaural. O binaural é uma condição que chega a todas as pessoas, porque a maioria ouve música pelo telefone celular. É só botar um par de fones e ir correr, ou andar de metrô. Quando você põe esse par de fones e ouve a mixagem binaural já tem uma dimensão [de imersão] da música, mesmo usando um fone comum, que o estéreo não consegue passar.”, coloca o engenheiro de som.
Forma de trabalho
Para trabalhar o Falso Brilhante, Ricardo teve a disposição a matriz digital com o som flat transcrito a partir dos originais analógicos gravados por Ary Carvalhaes nos estúdios da Phonogram. Em primeiro lugar, retirou ruídos indesejáveis. O trabalho de mixagem propriamente dito começou do zero levando em conta a referência da gravação e da mixagem original (feita por Marco Mazzola) em termos de imagem sonora e timbres. Ao contrário de álbuns anteriores da cantora, geralmente gravados em quatro canais, este foi em 16, o que trouxe apossibilidade de trabalhar voz e instrumentos em separado usando os melhores recursos atuais. “eu abri [os canais], dei uma limpada e alguma coisa eu já fiz dando uma polida no som porque o estúdio da Trama antigo tem equipamentos maravilhosos que vieram para cá. E mum primeiro momento usei alguns equipamentos analógicos, nos outros momentos foi totalmente com equipamento digital. A mixagem foi feita inbox”, explica Camera.
O inbox é feito a partir do Pro Tools e mandado para o software da Dolby. No Atmos, o engenheiro de som tem à disposição recursos como a mixagem “bed” – cama em inglês - e a por objeto. A primeira, é como se fossem camadas de som ou efeito que dão suporte ao objeto, como explica Ricardo Camera. “Eu faço a mixagem no Pro Tools e mando para um software que é o Dolby Atmos Mastering Suite. Temos então o Pro Tools alimentando o software da Dolby que cria o arquivo Atmos. Nele, você tem dois tipos de mixagem: o “Bed” - que é muito próximo da matrixiação que se faz no 5.1 - e o por objeto, o maravilhoso da coisa. Por exemplo, eu tenho um reverb que uso no show. Quero botar o ambiente como se fosse para quem está vendo esse show, Quando eu coloco esse reverb ele está vindo da frente, de trás... Faço a dosagem [do efeito] e quando vou ouvir tenho a sensação que eu estou dentro daquele lugar. Na ‘cama’ posso usar também, por exemplo, teclados em estéreo”, detalha.
Já o objeto seria o que pode entrar em movimento. Seria uma espécie de “efeito solo”, enquanto a cama seria um “efeito base”. “A mixagem por objeto permite o posicionamento espacial do mesmo no plano tridimensional do Atmos com muita precisão. Suponha o seguinte: uma pessoa vai jogar o videogame. Aí ela põe lá o bonequinho dela para um lado e o som acompanha o movimento. Isso é uma mix por objeto em tempo real.”, esmiuça Ricardo Camera, ressaltando que essa movimentação não era o caso da mixagem do Falso Brilhante. “Vamos imaginar assim: eu pego a voz da Elis, que é um objeto. Onde eu posicionar ela, o som vai acompanhar. Isso é definido por meio do panner. A guitarra é um outro objeto. No software Dolby Atmos Mastering Suite, cada vez que você habilita esse objeto ele cria um ponto verde dentro de uma sala imaginária. Então você tem lá um gráfico que é uma sala em formato de paralelepípedo tridimensional. Quando você posiciona o objeto, vê aquela bolinha andar. É uma visão gráfica do que está acontecendo com o pan. Quando essa fonte pontual toca, ela muda de cor. No final do processo gravo e crio esse arquivo Atmos que carrega metadatas”, detalha.
As metadatas são uma espécie de pulo do gato. Elas vão permitir o player identificar o tipo e arquivo que ele deve executar. “O áudio ao ser tocado no soundbar, por exemplo, o aparelho entende ser um arquivo em Atmos. Vamos supor agora que eu tenha um sistema 5.1. O meu receiver vai receber a metadata e entender que o layer de 5.1 deve ser acessado. Já com o telefone celular, ouvindo música na Apple ou Tidal, o dispositivo que vai tocar lê o metadado daquele arquivo e toca no melhor formato em ele puder ser reproduzido. No caso do Tidal, você consegue ainda que o som que está sendo ouvindo binaural fique mais afastado ou mais próximo mantendo o equilíbrio gerado na mix”, indica Ricardo Camera.
Todas essas opções envolvem modalidades de mixagens diferentes. Mas ao contrário do que acontecia em outros formatos imersivos, isto não representa, necessariamente, um re-trabalho para o engenheiro de áudio. “O que eu percebia nesses formatos multicanais é que os algoritmos de downmix ainda careciam de um desenvolvimento mais apurado. Eles provocavam acúmulos de frequência com as informações que traziam das caixas traseiras para frente. Já trabalhei em várias trilhas de cinema e, quando mixava em 5.1 e tinha de fazer a trilha em estéreo para o delivery, eu mexia bastante, porque se fizesse só o downmix os médio graves embolavam... Ficava uma coisa bem estranha. No Atmos, o downmix é muito especial”, comemora.
| João Marcello Bôscoli e Ricardo Camera
Mais brilhante
Para os ouvintes, a sensação é, em qualquer formato, a de estar mais próximo das intenções artísticas de Elis e dos músicos que tocam com ela. Para João Marcello, a sensação de missão cumprida. “Quando compara [a remixagem de 2022] com a original [antes do corte para vinil] é esse o som que está lá. Músicos bons, instrumentos bons, microfones que até hoje são bons, mesa analógica boa, tudo muito bem gravado. Eu estou tentando levar você, de olhos fechados, para a sala de teatro ou para o estúdio em que a Elis estava. Mantivemos a coesão [da imagem sonora], como se eles estivessem tocando no estúdio.”, conclui.