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REPORTAGENS / Matérias Completas

TBT Backstage: batucadas cariocas, brasileiras e mundiais

13/08/2020 - 14:39h
Atualizado em 01/10/2020 - 17:01h


Reportagem: Miguel Sá - redacaol@backstage.com.br / Fotos: Miguel Sá / Divulgação
Na foto: Pedro Lima, Carlos, Robertinho e Reginaldo

 

Música e cidadania são os pilares do projeto Batucadas Brasileiras. A Orquestra de Percussão Robertinho Silva desde março vem trabalhando para valorizar a percussão carioca e trazer os jovens da zona portuária do Rio de Janeiro para a música.

 

Luciano Fogaça Rodrigues, aluno da rede pública do Rio de Janeiro, em junho de 2006 viu um cartaz colado em uma parede do colégio estadual Benjamin Constant, no bairro de Santo Cristo. Nele estava anunciado o projeto Batucadas Brasileiras, promovido pelo Instituto Bandeira Branca, uma entidade civil sem fins lucrativos presidida por Maurício Nolasco. “A diretora do meu colégio, a dona Elisa, sabia que eu tinha aptidão para a música, em especial, a percussão. Fiz a inscrição, participei do processo de seleção e estou aqui”, diz Luciano, que também é morador do bairro.

 

Assim como Luciano, diversos outros jovens hoje podem dizer que estão trilhando um caminho bem-sucedido, e se não for nos palcos, pelo menos em suas vidas. É que o projeto Batucadas Brasileiras visa a inserção de jovens alunos da rede pública de ensino que morem em regiões pobres da cidade, principalmente na zona portuária do Rio, que engloba os bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo. A idéia é iniciar um processo de educação e cidadania junto a eles.

 

 

Parceiros
Com o patrocínio da Petrobras e do Ministério da Cultura e os apoios institucionais da Unesco, da Secretaria de Educação, da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro e da Prefeitura do Rio, foi alugada uma casa na Rua Camerino, mais precisamente na Praça dos Estivadores, no bairro da Saúde, na região central do Rio de Janeiro, onde acontecem as aulas e as oficinas do Batucadas Brasileiras. A localização não foi por acaso. Além de ter no seu entorno diversas comunidades pobres, o local é berço da cultura negra carioca, o que é importante dentro do espírito do projeto, no qual o aspecto cultural, focado na música, é a base do trabalho social feito ali.

 

Dezoito pessoas contratadas se dedicam inteiramente ao Batucadas Brasileiras, que iniciou suas atividades em março de 2006, além de cerca de 50 colaboradores eventuais. “Contamos com várias pessoas importantes na instituição, como o Paulo Barroso, que é um professor de música, da Claudia Cabral, que é diretora de relações institucionais, e a Cláudia Miranda, que é da UERJ, orientadora pedagógica do projeto e da instituição. Estamos montando uma instituição cuja base essencial é a capacitação profissional e artística de jovens em situação carente”, define Nolasco.

 

 

O espaço e as atividades
Luciano passou por testes de habilidade específica e entrevista no casarão de três andares que é sede da escola. No primeiro, fica a oficina de percussão, coordenada por Marcos China, no segundo, a área administrativa e no terceiro, o estúdio onde ocorrem as aulas de percussão. O curso e a orquestra são coordenados por Robertinho Silva, um dos mais importantes bateristas e percussionistas do Brasil, e Carlos Negreiros, músico e estudioso da música e da cultura afro-brasileira.

 

O curso tem a duração de um ano e é dividido em quatro módulos. O método de ensino utiliza o corpo como instrumento de percussão, seja com palmas, dança e até mesmo com os passos, como conta Robertinho Silva. “O folclore brasileiro tem três elementos: eu toco, eu canto e eu danço. No início, os homens ficavam constrangidos porque tinham que dançar, mas aí aprenderam que isso faz parte do folclore brasileiro”, diz.

 

A teoria musical também está presente no curso. O fato de ser, de certa forma, uma preparação para tocar em uma orquestra exige que os instrumentistas realmente saibam o que tocam. Na parte de ensino de instrumentos, além de tocálos, os alunos aprenderão, nas palavras de Robertinho Silva, “a respeitar os instrumentos. Você já viu violinista colocar o instrumento no chão? Você não pode colocar um copo em cima da percussão, você não pode sentar, porque percussão não é banco”, comenta o professor.

 

 

Além do respeito ao instrumento há também o respeito ao gênero musical que é tocado. Por isso, existe a preocupação de oferecer um embasamento cultural sobre os ritmos ensinados. Um exemplo disso foi a aula do colaborador do projeto, Mestre Odilon, da bateria da escola de samba Grande Rio. Ele explicou que a diferença entre os toques das baterias das escolas de samba tem origem na musicalidade específica das diferentes nações africanas que ocuparam a cidade.

 

Robertinho e Carlos contam ainda com os monitores Reginaldo Gonçalves, aluno de Robertinho Silva, e Pedro Lima, pandeirista que segue o estilo de Marcos Suzano. Entre os auxiliares que tocam percussão ainda há Ronaldo Silva e Jade. O quadro de músicos auxiliares ainda tem instrumentistas da parte de harmonia e voz, como Valmir Ribeiro, do Farofa Carioca, no cavaquinho, Robertinho de Paula no violão e Augusto Bapt na voz, ambos da banda Caixa Preta.

 

 

Estilo
Todo o processo de aprendizado desemboca na Orquestra de Percussão Robertinho Silva. A Orquestra AfroBrasileira, fundada em 1942 pelo maestro Abigail Moura, foi uma das inspirações para o formato de orquestra. Carlos conta que participou dela na década de 60. Segundo ele, foi a primeira onde a percussão tinha papel preponderante na formação. O grupo era dedicado a ritmos afro-brasileiros. “Fiquei muito admirado com aquele tipo de formação, com música negra, percussão na frente, saxofone, trombone, piano. Isso estava no meu inconsciente”, comenta o músico.

 

Mas o que exatamente significa ser uma “orquestra”? Quer dizer que cada músico tem uma participação na execução do arranjo e construção da sonoridade. “Aqui, nós vamos trabalhar com seções rítmicas, naipes de instrumentos. Todos vão tocar como se fossem um só”. Carlos ainda destaca que haverá um exercício intenso da dinâmica. “É uma orquestra. Esse não é um grupo só de groove. O grande diferencial é esse”, comenta.

 

A construção do estilo da Orquestra de Percussão Robertinho Silva não fica só por aí. O próprio conta que o grupo toca ritmos afro-brasileiros de todo o país, mas sempre com um sotaque carioca. A linguagem do samba sempre permeará os arranjos. “Não somos pernambucanos, cearenses ou baianos, mas pegamos todos os folclores do Brasil. Tocamos o congo de Minas Gerais, aprendemos a tocar o maracatu, o boi de matraca, que é um ritmo do Maranhão, o frevo de Recife, e o jongo, que veio da África para o interior de São Paulo e Rio de Janeiro, que é a sede do jongo, com o Jongo da Serrinha”. O samba está presente em todos esses gêneros nos instrumentos e na forma como a orquestra toca. Robertinho exemplifica com um ijexá baiano tocado com chocalho e dois surdos: ele terá sempre um “sotaque” diferente do que é tocado em Salvador. Instrumentos como o repique e o tamborim, tipicamente cariocas, quando encaixados em um ritmo de fora acabam dando o “molho” típico do samba.

 

 

Fábrica de instrumentos
Outra atividade importante no Batucadas Brasileiras é a oficina de instrumentos musicais coordenada pelo percussionista Marcos China. A oficina pretende ser auto-sustentável, com a formação de uma rede de cooperativas para ajudar na comercialização dos instrumentos musicais fabricados pelos alunos. Além disso, ela também fornecerá instrumentos para a orquestra. “Os instrumentos artesanais estão presentes em todas as manifestações musicais brasileiras, principalmente nas mais tradicionais. Nós desenvolvemos de 20 a 30 (tipos de) instrumentos diferentes”, expõe Marcos. “A maioria é conhecida, como berimbau, caxixi e xequerê, mas também há lugar para a criação de novos instrumentos e sons”, completa, falando sobre os instrumentos de efeitos sonoros que podem ser feitos com frutos e sementes. Existe o projeto de plantar essas matérias-primas nos quilombos do estado do Rio de Janeiro, como acontece no Quilombo Campinho, em Parati. As aulas são de terça a sexta-feira, de duas às seis da tarde, com limite de dez pessoas por turma. Existe a intenção de abrir horários pela manhã.

 

 

Planos
Além da questão social, há também a intenção de fazer um trabalho para fomentar a cultura afro-brasileira do Rio, começando com um trabalho no carnaval de rua. A idéia é também resgatar, levando em conta o aspecto musical, os ritmos do candomblé. Não está fora de cogitação a possibilidade de fazer shows no Brasil e no exterior. “Sempre disse a estes artistas que devemos descobrir uma alternativa nossa de produção. Não temos de depender das grandes estruturas, que estão falidas”, diz Maurício Nolasco referindo-se ao caminho tradicional de venda de música. “A rua é o nosso palco e se não tomarmos o que é nosso, nós desaparecemos. Esse projeto nasce como uma alternativa de produção real para chegar ao disco, ao espetáculo. Não estamos muito preocupados com a gravadora daqui, estamos preocupados em criar alternativas nossas próprias, cuja meta é o palco de rua”. Os planos para o futuro ainda incluem a formação de novas escolas em outras áreas artísticas, como dança, artes cênicas e fotografia, todas em prédios diferentes na zona portuária. Na área musical, foi feito um convite a Carlos Malta para que ele faça uma orquestra de sopros. Ela se associaria à orquestra de percussão para apresentações.

 

O fato é que já há efeitos imediatos nos alunos, como demonstra Luciano. “Tenho muita expectativa no futuro. Eu não sabia o que ia fazer na faculdade, estava em dúvida entre jornalismo, física e química. Acabei decidindo por música. O projeto me ajudou a entender melhor o que eu sinto”, diz o aluno de 19 anos.

 

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