Microfones vintage: o fascínio que a qualidade traz
02/07/2020 - 15:09h
Atualizado em 30/07/2020 - 10:40h
Reportagem: Miguel Sá - redacao@backstage.com.br
Qualidade, personalidade, importância histórica... Por que os microfones antigos provocam tanto fascínio? Clement Zular, Flávia Calabi, Maurício Gargel e Roldão desvendam o que está por trás da mágica dos chamados microfones vintage.
O microfone é o “ouvido” de um sistema de áudio. Se ele for bom e a pessoa que o estiver usando souber trabalhar, a probabilidade da qualidade da gravação ser boa é grande. Por conta da importância na qualidade do áudio e sua influência no timbre, o microfone acaba causando um certo fascínio em quem gosta de áudio.
Há vários que marcaram época desde os primeiros que funcionavam a carvão, evoluindo para os condensadores - problemáticos no seu início – e os de bobina móvel (microfones dinâmicos). A partir daí, foram poucas as mudanças que ocorreram, mas, no decorrer desse tempo, algumas marcas e modelos fizeram época, se tornaram cobiçados e ganharam o rótulo “vintage”. Eles atraem a atenção seja pela importância histórica, qualidade sonora ou timbre diferenciado. É sobre esses microfones que Clement Zular, Flávia Calabi, Maurício Gargel e Roldão nos falam nesta reportagem.
FAZENDO HISTÓRIA Por trás da expressão “vintage”, no entanto, podem se esconder algumas armadilhas. Ela pode tanto ser aplicada a um equipamento clássico como a outro que é apenas velho.
“Aplicar essa terminologia a equipamentos de áudio é perigoso. Às vezes, ‘velho’ seria a melhor palavra para definir o estado de um equipamento. Não é porque um microfone tem válvulas velhas e está enferrujado que ele é bom”, explica Maurício Gargel, técnico de áudio e professor do Instituto de Áudio e Vídeo (IAV).
Entre os vintage que marcaram a história do áudio estão os microfones “garrafa”, como o “Neumann Bottle” CMV3, por exemplo. Projetado em 1927, este microfone marca a transição definitiva dos antigos microfones a carvão e de fita para os condensadores, como explica Flávia Calabi. “Dentro dele tem uma válvula enorme e as cápsulas são cambiáveis conforme o diagrama polar desejado. Ouvi uma gravação (CD “Das Mikrofon” do selo TACET Vol.1) feita em 1996 com esse microfone do museu da Neumann. Ela é tão boa que tira meu fôlego a cada vez que a ouço. A alemã Schoeps também tem seu microfone ‘garrafa’ só que fabricado bem depois, em 1949, o CMV 50/2 com 2 válvulas dentro”.
O CLÁSSICO O equipamento que ganha o status de clássico é usado mesmo que já tenha saído de linha ou que haja outros com mais recursos. “Como o bom vinho, é o microfone de uma safra especial”, diz Flávia Calabi. “Sua qualidade excepcional é sublinhada por uma conjunção de fatores objetivos, técnicos - como a perfeição de seu projeto e construção, a fidelidade com que capta a realidade sonora - e fatores subjetivos, como o momento emocional, a história de bons serviços prestados, a pátina do tempo que lhe conferiu o título de ‘antigo’, o design quase sempre volumoso que denota um passado que já se foi”, conclui a técnica de som.
Um exemplo de microfone clássico bastante citado é o Neumann U-47. Um dos motivos para isto são suas válvulas. As originais, modelo VF14, não são mais fabricadas e são, segundo Maurício Gargel, fundamentais na sonoridade do equipamento.
O técnico de som e empresário Roldão se lembra de como ficou fascinado ao ouvir, pela primeira vez, no início de sua carreira, no final da década de 60, um destes funcionando. “Naquela época ele ainda não era o vintage. Hoje, as pessoas o usam no estúdio não por falta de opção, mas por querer aquele som”, ressalta o técnico de som e empresário. O U-47 chegou a ser usado por artistas como os Beatles e Frank Sinatra. Como outro exemplo têm-se os Coles, microfones de fita feitos originalmente para a BBC, da Inglaterra.
PERSONALIDADE A característica sonora do microfone também pode ser um fator determinante para que ele se torne um clássico. Mais uma vez o Neumann U-47 é citado como exemplo. “Até hoje ele é uma referência”, comenta Clement. Já os microfones de fita – dos quais os RCA 44BX e 77DX são exemplos – têm como característica um agudo mais suave que o de microfones condensadores. Na época em que foram mais usados, na primeira metade do século passado, os equipamentos de reprodução sonora tinham um range de freqüências mais estreito. Enquanto microfones condensadores mais atuais podem reproduzir até 20 kHz, os de fita, depois de 15 kHz, têm uma resposta menos intensa, o que daria um agudo mais “natural” que, de acordo com Maurício Gargel, pode agradar bastante como overall em uma bateria de jazz, por exemplo.
Flávia Calabi tem vários microfones vintage que utiliza em seus trabalhos. “Uso frequentemente meus Neumann KM-84 da década de 40 nos violinos, violas e violoncelos de orquestras sinfônicas. Que diferença de qualidade se comparados aos atuais KM-184! Um outro microfone que gosto de usar é o Neumann SM-69. Trata-se de um microfone à válvula, estéreo, excelente para captar o geral de orquestra em grandes ambientes”.
Há também microfones bem específicos como os Shot Gun Sennheiser da década de 60 (modelos MKH 805/ 815/816). Clement já os havia usado e procurava um “shot gun” que soasse musical como eles. Depois de testar inúmeros modelos atuais e não achar a sonoridade que queria, ele comprou três destes modelos da Sennheiser.
Há ainda vários outros modelos cobiçados, mais ou menos raros, fabricados até hoje ou não, como os Telefunken Ela M 250 e 251, os Neumann KM 83 e KM84, os AKG C12 , os Bruel & Kjaer 4003 e o Schoeps CMC5 MK2.
O SOM DO VINTAGE Antes das válvulas, o uso dos condensadores era praticamente impossível em função de sua alta impedância e baixo volume de saída. “O uso de válvulas para amplificar o sinal resolveu esse tipo de limitação”, explica Gargel. Mas, desde a década de 60, a válvula vem sendo substituída pelos transistores, que são componentes bem menores, menos frágeis e mais estáveis. No entanto, as válvulas têm características sonoras específicas que podem ser interessantes em diversos trabalhos. Flávia Calabi gosta deles e explica algumas das características dos microfones valvulados. “Alguns microfones à válvula têm realmente uma sonoridade fiel à realidade. Não é só a resposta de freqüência, completa de 20Hz a 20KHz plana, sem distorções, sem variações. O que é chocante é a velocidade da resposta”.
Flávia conta que, uma vez, perguntou ao técnico em eletrônica Milton Lange, especialista em eletrônica para áudio, o porquê desta característica nos microfones mais antigos, que não têm circuito híbrido. Ele explicou a ela as diferenças entre eles – que usam apenas válvula - e alguns microfones valvulados mais recentes, com circuitos híbridos. “Os que são puramente à válvula não possuem nenhum outro elemento ativo além da válvula. São mecânicos, de construção muito simples e por estes motivos permitem alta dinâmica, isto é, muita velocidade sem distorção. Não existe componente mais rápido que a válvula, o que permite a melhor ‘slew rate’, ou seja, a melhor taxa de velocidade x tensão. Já os microfones à válvula mais recentes são mais complexos em sua construção, usam circuitos híbridos com FETs e outros componentes ativos além da válvula. Os FETs produzem uma compressão inicial que modifica o envelope do som, indefine o ataque do sinal, fazendo com que o microfone perca a definição dos diversos timbres, além de perder a velocidade de resposta aos estímulos da dinâmica musical. Por outro lado os circuitos híbridos permitem projetar voluntariamente modificações na resposta de freqüência, de maneira a privilegiar agudos ou graves”, comenta.
SIMULAÇÕES E REEDIÇÕES Toda essa procura por sons clássicos gerou dois fenômenos no mercado: as reedições de microfones e os simuladores digitais de mics vintage. Quanto aos últimos, Maurício Gargel não tem meias palavras: “isso é piada”. Já Clement acha que eles podem ter o seu lugar. “Eles são interessantes, mas é como o nome diz, são simuladores. Em gravação de música erudita, no qual é importante ter o timbre específico daquele instrumento e da sala onde acontece a gravação, não dá para usar. Já em música pop dá para conseguir efeitos bem legais usando-os como uma ferramenta dentro do processo criativo”, explica.
Na procura pelo som clássico, tanto as reedições quanto os microfones que substituem os modelos vintage tradicionais podem ser muito bons. Clement considera o AKG D-112, baseado no antigo AKG D-12, um ótimo microfone. Para Gargel, os substitutos de modelos tradicionais que as fábricas fazem também podem ser ótimos. “Um M49 – modelo clássico da Neumann – possui uma magia.
Mas o seu substituto, o M149, é novo e sinceramente um dos melhores microfones que eu já usei. É impressionante! Um outro exemplo de produto novo muito interessante é o Josephnson C42. Muitos reclamam que a Neumann nunca mais conseguiu fazer um microfone parecido com o KM84 apesar de seu substituto KM184. Pequenas alterações na abertura lateral da cápsula proporcionam um leve aumento entre 8 e 10KHz e o fato de os novos serem transformerless lhes confere uma resposta neutra de graves. De certa forma isso explica o “som magro” dos novos KM184. O C42, mesmo sendo um microfone novo, é, para mim, um microfone com sonoridade mais agradável do que o Km184. Não é exatamente uma reedição mas uma ótima opção”, comenta o técnico.
MICROFONE: UMA PARTE DA GRAVAÇÃO Depois dos microfones, ainda há outros fatores importantes, como a qualidade dos cabos, do pré-amplificador e, principalmente, em tempos de digital, da conversão A/D. “Acho que importante é, antes de gravar, já saber o timbre que se quer. Se quiser o timbre específico de um microfone valvulado, use um. O som da gravação não é só o microfone, é como você o usa. E há outros equipamentos também. Você pode testar outro modelo de cabo, um pré diferente, usar um microfone a mais diferente para ter opção. Não há regras”, expõe Clement.