Reportagem: Miguel Sá / Fotos: Divulgação / Reprodução
Andreas Schmidt tem, em seu currículo, a direção técnica de festivais como Lollapalooza e Tomorrowland em suas edições brasileiras. Com ampla experiência em articular áudio, vídeo e transmissão de grandes eventos, o profissional tem trabalhado também na explosão de lives da pandemia de covid-19. Em entrevista para a Revista Backstage, Andreas explica as semelhanças e diferenças entre as lives e os eventos tradicionais dos quais já participou contando os detalhes da transmissão de Gilberto Gil para a cerveja Devassa. A localização do show, no sítio do músico em Araras, entre montanhas e vales, representou um desafio técnico.
Clique na imagem e assista a live de Gilberto Gil
Qual a diferença da Live para outros tipos de eventos?
A questão é o orçamento. Você vai escolher se faz com três, quatro ou cinco câmeras, vai depender se tem diretor artístico e se ele vai querer acrescentar algo ou vai trabalhar dentro do que foi definido no orçamento. Tem um diretor de corte que pode dizer que quer mais uma câmera com cabeça remota. Depende do artista, que também pode sugerir alguma coisa... Isso tudo é amarrado na pré-produção. Hoje tem dois tipos de lives ao meu ver: uma musical, outra de evento corporativo. Quando faz a transmissão de um show não mudou tanta coisa. Há uns oito anos isso já vem sendo feito. Você tem um encoder para subir a transmissão e não mudou tanto. Basicamente a estrutura é a mesma, com uma House mix que tem controle de luz, controle de som, controle de vídeo e o acréscimo da transmissão (pela internet) com um encoder, a plataforma para fazer a transmissão e o software, que pode ser um OBS.
O trabalho funciona como uma transmissão normal de TV?
Não tem uma fórmula certa. O Lollapalooza, por exemplo, você faz uma captura do show do artista e transmite ele. Tem que existir um contato maior entre as produções. Muitas vezes a emissora está fazendo a captação de um show do Metallica e não pode interferir, não pode chegar e colocar um câmera no palco. Vai ter que pegar a imagem que o artista está fornecendo para o painel de LED. Em uma live dedicada isso é diferente.
A transmissão de eventos via internet ganhou importância para as marcas?
O patrocinador passou a ver a live como uma coisa mais interessante daqui para frente, porque vê a marca posta para o número de pessoas muito maior. Acho que é um mercado paralelo que abriu e não vai deixar de existir, mas não é uma coisa que será constante. Hoje você não tem opção, mas no momento em que houver as pessoas, com certeza, vão querer sair para tomar um chope, comer uma pizza, ir para um show com a galera, então não acredito que a experiência do ao vivo vai deixar de existir. Mas esse mercado paralelo, que já vinha em expansão e teve que se expandir rápido pela situação, acho que vai ter uma queda quando voltar a ter o convívio social.
Como diretor técnico, com o quê você tem que se preocupar ao planejar uma live?
São várias preocupações. O planejamento normal de sonorização e iluminação não foge muito da rotina de festivais. Tem um rider de áudio e iluminação. Esta é mais intensa para a captura de imagem, não adianta chegar e colocar um monte de moving light que não vai ser bom para as câmeras. Então tem uma conversa com Light designer, e muitas vezes o artista nem traz o light designer porque já tem diretor de fotografia que se preocupa com a captura de imagem pelas câmeras. O que muda é a internet. Você tem que ter banda para fazer a transmissão. Nem todos os locais tem estrutura para isso, então o ideal é que consiga trafegar o sinal por fibra, e que não seja uma rota só. O caso do Gil foi um processo complicado. Tem que tem uma fibra por outra localidade, porque se cair a árvore em uma fibra pode cair a transmissão. Você tem que ter quatro ou cinco operadores com 5 ou 10 mega, aí você tem uma banda com velocidade suficiente para subir sem problema, e tem os parâmetros do YouTube. Tem uma fórmula que eles passam para subir o som e o vídeo. Se quiser fazer a imagem em 4K no YouTube, eles não vão se responsabilizar se tiver alguma falha para segurar isso. Depois de tudo isso, tem que ter a preocupação da energia elétrica, porque tem que ter o gerador e o backup do gerador. Toda essa parte de internet deve estar associada a nobreak, porque se o gerador parar por algum motivo tem que ter um respiro para não cair tudo. Com nobreak ativo, mesmo que a banda pare de tocar, pode colocar um selo com a marca no ar. O que muita gente faz é ter um software como o OBS para fazer um encoder, soltar as máscaras, soltar os vídeos, gravar e fazer tudo com ele. Somos muito contra esse tipo de operação, a não ser que faça uma coisa mais caseira. Mas para uma transmissão como a do Gil, por exemplo, eu quero ter um player só para os vídeos, e não fazer o corte (de imagem) dentro do OBS.
Como foi a produção do áudio para o Gil?
Eu conheço o Leco. Somos amigos há muitos anos. Liguei para ele e perguntei o que estava no pacote. Disse que precisava do mixer dele ligado no meu player de vídeo. Para isto, ele precisava reservar dois canais para mim, porque não é só a parte musical. Tem uma pessoa apresentando e um roteiro que vai acontecendo. A mesma conversa tivemos com o iluminador quando falamos sobre o diretor de fotografia e diretor de corte. Estes ajustes foram feitos porque não é exclusivamente um show do Gil. Poderíamos ter colocado o Leco mixando somente a banda e ter outra mesa de som para toda a parte do evento, mas eu conheço o Leco há muito tempo e confio muito nele, e teve uma preocupação com os volumes de som, de mandar isso masterizado para o YouTube. Então fizemos um teste um dia antes: subimos o sinal para ver o os níveis a pressão, se as respostas da frequência estavam homogêneas, se estava bem nivelado e tentar ganhar o melhor headroom possível dentro da faixa que temos e não ficar com tanta oscilação. Ficou muito bom o resultado com o Gil a meu ver.
E como foram as providências com relação à pandemia?
Na live do Gil, colocamos toda a estrutura da técnica em um ambiente que era fechado e fora do ambiente do palco. As pessoas do ambiente do palco - câmeras, cabo man... - estavam todos com luvas, vestimenta, máscaras e óculos, sem contato com os músicos. Todas as pessoas envolvidas na equipe fizeram exames. Claro que pode acontecer falso positivo ou falso negativo, mas pelo menos temos um controle e, se tiver alguém com problema, essa pessoa não participa da gravação ou da transmissão. Já teve casos positivos assintomáticos. A pessoa poderia transmitir para outras. Isso vai vir para ficar: o cuidado com a higiene será muito maior. Não tivemos cabo man para todas as câmeras e quem não precisasse trabalhar no ambiente fechado ficava de fora. Como era a família, não interferimos com o artista e a produção dele. Todos estavam juntos lá e foi tudo super monitorado porque a pessoa (Gilberto Gil) tem 78 anos.
Foi possível fazer visitas técnicas?
Tivemos a sorte de ter tido uma live da Iza uma semana antes lá (transmitida dia 20 de junho). Isso facilitou muito porque pudemos analisar antes fotos do local. Também teve antes uma live francesa (especial gravado para a TV pública francesa no mês de junho). O Leco estava muito envolvido no processo e pôde nos passar informações sobre onde montar geradores e outras coisas. Da equipe, foi antes uma pessoa de transmissão, uma pessoa de internet e uma pessoa de produção. Não achei necessário estar lá (em visita técnica) porque já sabia o local de montar a house mix. Só achei importante a pessoa da internet ir e do corte irem para poder ver posicionamento de câmera. Teve mais uma pessoa que levou o que era de cenografia e estruturas. Foi o próprio dono da empresa para pegar as medidas. Tivemos um efetivo bem reduzido na equipe (durante a transmissão). Eram três operadores de câmera, dois para fazer o corte, o Leco dentro da sala do diretor artístico... Acho que umas sete pessoas no total. Eu mesmo me mantive afastado e tinha uma pessoa comigo, o André, que é uma pessoa de broadcast. Ficamos afastados no mesmo recinto e monitorando pelo YouTube se estava tudo indo bem.
Como é a conversa com o Youtube?
Existe um contato, mas no geral é bem automático.
O lip sync é uma questão na transmissão?
Pois é. Estamos em 2020 e ainda temos que fazer lip Sync. Há muito processamento envolvido de áudio e vídeo. Você está com tudo junto, mas na hora pode ter encoders de melhor ou pior qualidade. Se não tiver um roteador que trabalha em giga, só ele já dá um delay, e como estamos trabalhando com digital tudo tem um delayzinho. O YouTube espera todos os pacotes (de áudio e vídeo) chegarem para depois lançar. Isso nada mais é do que aquela situação do CD do carro que pegava as amostras e só tocava tudo junto (para não haver interrupções quando o carro passava em um buraco). O Youtube Faz isso: atrasa 30 segundos a reprodução (para corrigir a diferença entre áudio e vídeo) e eles têm um sistema muito bom que funciona muito bem. A questão é que temos que fazer um broadcast como já fazíamos. Na verdade o valor deveria ser mais caro e pessoas ainda querem pagar menos por uma transmissão pela internet. Eu explico para as agências que você continua tendo uma house mix com tudo lá dentro só que ainda tem a internet com o encoder mais uma plataforma e eles querem pagar menos. O pessoal está com uma ideia errada do que é internet e temos dificuldade para explicar porque também existe um “corre” muito grande das empresas, que estão precisando trabalhar e oferecendo valores que não deveriam ser praticados. Não sei como depois vão voltar aos valores que eram praticados anteriormente. Isso é um problema que ainda está por vir.
Montagem para a live de Gilberto Gil, no sítio do cantor, em Araras
Vai haver mudanças daqui para frente?
Temos as ferramentas e acho que temos que usá-las. Não é reinventar, só não podemos é parar de estudar. Temos que continuar estudando esse intercâmbio de informações para estar atualizado dentro do que tem de recursos. Isso não pode deixar de existir nunca. As ferramentas que já estavam aí vão evoluir e vamos evoluir junto com elas, e isso tem que ser enfatizado ou vamos ficar reinventando a roda. Temos que estudar para não ter que passar por coisas que já passamos anteriormente e ficar inventando a roda de novo. O pessoal dos games já usava tudo isso que estamos usando há uns seis anos. É um período difícil porque não tem eventos corporativos como antes, não está tendo show, não tem aquele negócio gigante para 100 mil pessoas, mas acredito em um retorno do que tinha antes somando o que está sendo feito hoje.