Alguns músicos se eternizam por suas obras. Outros, pelas influências em outros músicos, ou ainda pelos mitos que giram em torno de suas carreiras. Nesta conversa, fazemos uma singela homenagem a um dos mais importantes bateristas e letristas da história do Rock’n’Roll, Neil Peart, que partiu no início de 2020 e deixou um legado imensurável, por todas as contribuições, inovações, reinvenções e referências para gerações atuais e que ainda estão por vir, e que sempre esteve por detrás dos holofotes, mesmo que seu brilho emanasse sem a necessidade de evidência proposital ou destaque midiático.
Neil Ellwood Peart nasceu em Hamilton (Ontário, Canadá) em 12 de setembro de 1952. Ainda na infância, teve algumas lições de piano, mas que não causaram estímulos mais significativos para a música. Na adolescência descobriu a aptidão, interesse e fascínio pela bateria. Paixão dividida com a literatura. Nestas duas artes, desenvolveria duas linguagens únicas, mesmo que repletas de referências, influências e estilos notáveis e explícitos.
Trabalhando com seu pai em uma loja de equipamentos para agricultura, aos dezoito anos decidiu-se pela música como profissão e dedicação exclusiva, vindo a participar de algumas bandas com relativo êxito e reconhecimento local. Após uma frustrante, mas decisiva viagem a Londres, por um período de um ano e meio, para se desenvolver musicalmente, retornou ao Canadá, onde foi convencido a comparecer a uma audição para uma banda de Toronto chamada Rush. Com vinte e dois anos, Neil Peart iniciou sua trajetória definitiva com essa banda – de fato, um Power Trio – com a qual gravou 27 álbuns e DVDs (estúdio e ao vivo).
Desde o primeiro momento, além de baterista e percursionista, Peart também se tornaria o principal letrista da banda, abordando diversos temas relacionados à Filosofia, Astronomia, Mitologia, além de referências à Ficção Científica e à própria História, tornando-se também venerado como poeta e letrista. Complementar à produção poética e lírica na banda, Peart escreveu quatro livros: Masked Rider (1996), Ghost Rider (2002), Travelling Music (2005) e Roadshow: Landscape With Drums (2006).
Mas já no primeiro álbum com a banda Rush, Fly By Night (1975), Peart se destacou em canções como Anthem e a épica faixa de quase nove minutos By-Tor & the Snow Dog. No álbum seguinte lançado naquele mesmo ano, Caress Of Steel, versatilidade e audácia da primeira canção, Bastille Day, ao ‘lado B’, com outra faixa de quase dezenove minutos, The Fountain of Lamneth. Se sobrava ousadia, não faltavam críticas e cobranças.
Figura 1: Neil Peart na “Hemispheres Tour” (1978-1979). Fonte: Pete Still/Redferns/Getty Images.
A grande guinada da banda viria com uma trilogia impecável: 2112 (1976), A Farewell To Kings (1977) e Hemispheres (1978). Com esses álbuns, amplificaram as possibilidades, a criatividade e sonoridades (com sintetizadores e diversos efeitos). Rush atingiu patamares incomparáveis, e lançou canções como Closer To The Heart, Xanadu, The Trees e La Villa Strangiato. Nesse período (1975 a 1978), Peart utilizou basicamente um kit de bateria da marca americana Slingerland, complementada com peças das marcas Ludwig, Pearl e Premier, pratos da Avedis Zildjian Company e baquetas ‘Pro-Mark 747 wood tip’, além de diversos elementos de percussão.
Na década de 1980, Permanent Waves (1980) e Moving Pictures (1981) consolidariam a banda em uma posição destacada no cenário do Hard Rock e Rock Progressivo, além do status de ‘mestres’ em cada instrumento. São desses álbuns algumas das canções mais clássicas, como The Spirit Of Radio, Frewill, Natural Science, Tom Sawyer, Red Barchetta e YYZ. Peart adotaria uma nova bateria, da marca japonesa Tama (custom e depois série Artstar), com variações para novos instrumentos de percussão e mais versatilidade.
Com nítidas influências das sonoridades que marcariam essa nova década, com mais intenso uso de sintetizadores e samplers, gravaram Signals (1982), Grace Under Pressure (1984), Power Windows (1985), Hold Your Fire (1987) e Presto (1989). Além de clássicas canções (a lista seria imensa), a nova sonoridade também marcaria a transição da bateria Tama por uma nova, da marca americana Ludwig Drums, série Super Classic e adição de Pads eletrônicos (das marcas Simmons e Sydney), como também um teclado com unidades percussivas da marca KAT Percussion.
Figura 2: Neil Peart na “Hemispheres Tour” (1978-1979). Fonte: Den Of Geek.
A década de 1990 viria com Roll The Bones (1991), Counterparts (1993) e Test For Echo (1996). Nesse período, houve o resgate de uma sonoridade mais pesada e crua, assim como uma nova bateria, da marca americana Drum Workshop (DW) que o acompanharia até as últimas gravações e turnês, complementada com outros equipamentos e dispositivos, como instrumentos eletrônicos da Roland V-drums.
Ainda na década de 1990, Peart teve sua vida impactada com tragédias pessoais; após um hiato de seis anos, retornariam no início dos anos 2000 para o lançamento de Vapor Trails (2002). Da turnê desse álbum, incluiriam pela primeira vez o Brasil para as últimas três apresentações. Do show realizado no Rio de Janeiro, no estádio do Maracanã, lançaram “Rush In Rio” (2003).
Lançariam ainda um EP, Feedback (2004), com oito covers de bandas que foram decisivas como influências, além de dois discos com canções inéditas: Snakes & Arrows (2007) e Clockwork Angels (2012).
Figura 3: Neil Peart na “Signals Tour” (1982). Fonte: Paul Naktin/Getty Images.
Como músico, além de evoluir e se reinventar constantemente pela incorporação dos mais diversos instrumentos de percussão, o que possibilitou um enriquecimento musical sem precedentes na história do Rock’n’Roll, Peart estudou exaustivamente para shows e álbuns em tributo ao lendário baterista Buddy Rich, a convite da própria filha daquele lendário baterista. Não satisfeito com sua técnica, teve aulas com o professor e baterista de Jazz Freddie Gruber.
Em reconhecimento ao desenvolvimento da bateria como um instrumento protagonista em um trio no qual todos os instrumentos possuem esse mesmo peso e importância, Peart recebeu diversos prêmios e honrarias, dentre as quais 38 prêmios pela revista especializada Modern Drummer (de 1980 a 2012).
Seria redundante destacar a importância de Neil Peart como baterista, ícone, referência e influência para gerações de bateristas. Mais do que isso, Peart construiu gerações de “air drummers”, transformando guitarristas, baixistas, tecladistas e outros em “bateristas imaginários”, além de fazer com que todos esses músicos escolhessem a bateria como segundo instrumento de predileção.
Figura 4: Rush na “Time-Machine Tour” (2010-2011). Fonte: Production Design International.
Avesso ao assédio e à fama, Peart se consolida como um dos principais bateristas da história, sendo recorrente a sua indicação ao ‘Top 3’ ou ‘Top 5’. E mesmo muitos dos bateristas que não consideram ou tiveram Peart como influência, enaltecem o respeito pela relevância dele no cenário musical mundial.
Na iluminação cênica, desde as primeiras turnês, coube ao Lighting Designer Howard Ungerleider a incumbência de ressaltar a bateria em primeiro plano. A partir daturnê do álbum 2112 (1976),que representou um divisor de águas da primeira fase da banda, coube a Ungerleider explorar todas as facetas da bateria e do baterista.
A evolução musical e cênica pode ser percebida em dois registros seminais na carreira do Rush: All The World’s a Stage, álbum ao vivo de 1976, e Exit... Stage Left, álbum e vídeo, que compilam canções das duas primeiras fases da banda.
Além desses, lançaram outros nove álbuns com gravações realizadas durante as vinte e cinco turnês: A Show Of Hands (1989), Different Stages (1998), já citado Rush In Rio (2003), R30: 30th Anniversary World Tour (2005), Grace Under Pressure Tour (2006), Snakes & Arrows Live (2008), Time Machine 2011: Live in Cleveland (2011), Clockwork Angels Tour (2013) e R40 Live (2015).
Figura 5: Neil Peart no David Letterman Show (2011). Fonte: Jam Base
Em todas as turnês do Rush, Howard Ungerleider também atuou como Lighting Director, responsável pelo desenvolvimento conceitual e tecnológico dos espetáculos, o que naturalmente merecerá uma coluna especial, pelas contribuições em uma carreira de mais de quarenta anos dedicados não somente ao Rush.
A esta banda, com essa extensa e seminal discografia, ainda há muito a ser destacado e reverenciado. A Neil Peart, um novo capítulo se inicia. Passa de um espetacular e incomparável músico e letrista, já considerado como uma lenda, para um outro patamar de admiração e respeito. Faleceu no dia 07 de janeiro de 2020. A morte foi divulgada só depois de três dias, depois de uma luta sigilosa de quase três anos contra um câncer no cérebro. Pelo seu caráter reservado e discreto, nada foi divulgado nesse período, o que também poupou seus fãs do sofrimento e comoção que poderiam ser ainda mais duradouras (no período) e que ainda repercutem com intensidade e devoção.
Para a eternidade, Neil Peart sempre brilhará e terá seu lugar na Plêiade dos ídolos e músicos magistrais que elevaram a bateria a um patamar de destaque e inovação musical. Como letrista, contribuiu para a formação de gerações de músicos e admiradores que desenvolveram a leitura e estudos, fascinados pelas temáticas de introspecção e também esperança. Com certeza, Peart, muito positivamente, fez a diferença na vida de muitas pessoas para além do palco iluminado. Gratidão eterna ao “Professor”!!!