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REPORTAGENS / Colunas

Vida de artista

05/10/2023 - 16:29h
Atualizado em 06/10/2023 - 13:57h


 

O corpo chega na frente, mas a cabeça demora um pouco mais

(Calma, pessoal, não é filme de terror)

 

 

TERÇA FEIRA, 21:30hs

Entrego o carro na locadora perto do aeroporto de Confins. Para evitar perdas de voo – quando a partida é muito cedo - costumo dormir num hotel em frente ao aeroporto, mas a manobra necessária é deixar o carro, pegar a van da locadora até o aeroporto e de lá pegar a van do hotel. Estou exausto depois de um dia inteiro embalando caixas de mudança, saindo fora de um apartamento mofado que deixou a família inteira com alergia. A cama é muito confortável, como uma batatinha chips, tomo uma cerveja e…

 

 

QUARTA FEIRA, 4:00 da manhã

…Pulo da cama com o celular cantando a musiquinha chata que esqueci de trocar quando tive a boa ideia de ajustar o despertador para o caso de apagar antes de acionar o do hotel. É sempre assim, eu me conheço. Tomo um banho um pouco mais demorado do que devia,  mereço, acordei meia hora antes do necessário justamente para isso. O café deste hotel – que costuma hospedar também as tripulações das aéreas – abre às 5 da manhã e sou um dos primeiros a chegar no salão. Às 5:30 já estou na van, são cinco minutos até o aeroporto.

 

 

QUARTA FEIRA, 5:45

No check-in da aérea. Nosso voo tem uma escala em Brasília, mas chegaremos a Maceió bem a tempo das ações de divulgação. Na sala de embarque encontro com meus companheiros de turnê: o 14 Bis (Sergio Magrão, Hely Ferreira, Claudio Venturini e Cristiano Caldas), Gegê Lara e Carlos Alberto Xaulim (empresários) e a turma da técnica: Victor Moreira chefiando Franguito (luz), Henrique (monitor), Tirinho (PA), Eustáquio (roadie Flávio) e Lapinha (roadie 14Bis). Em Maceió nos juntaremos a Flavio Venturini, Guarabyra, Chico Calabro (empresário de Sá & Guarabyra) e Jasiel Araújo, nosso roadie. Seremos 16 ao todo, nessa tour de 4 capitais, a primeira investida nordestina do nosso Encontro Marcado – nome desse show de velhos amigos e parceiros que vem enchendo casas desde que fixamos esse formato de cantarmos e tocarmos sempre juntos nossos maiores sucessos.

 

 

QUINTA FEIRA, 10:00

Acordei, abri as cortinas e dei de cara com o mar de Pajuçara me chamando. Como não atender? Já perdido o café da manhã - não atino porque hotéis em regiões turísticas insistem em encerrar às 10! - só me resta o mergulho. Minha carioquice se ressente da ausência de sal na pele já há algum tempo. Para alguém que cresceu salgado, isso é como tirar o tempero da vida. Lá vou eu, atravesso a rua sem lenço nem documento e caio de cabeça nas ondas alagoanas. Que delícia. O corpo grita obrigados em série.

 

 


​Foto divugação / internet

 

 

QUINTA FEIRA, 18h

Chego ao Teatro Gustavo Leite para a passagem de som. Sendo a primeira da tour, é a mais importante e toma tempo, o que nos fará ficar no teatro até a hora do show. Os ingressos estão esgotados desde ontem, ótimo começo pra nossa tour Nordeste. Beleza de show, público feliz, nós também! O show é longo, quase 2h30. Ficamos até uma da manhã recebendo os fãs.

 

 

SEXTA FEIRA, 10H

Chegamos ao aeroporto de Maceió. Parte da turma preferiu encarar de ônibus (o nosso é poderoso, cama de verdade) os 500 e tantos quilômetros até Natal. Nós outros, aeronautas convictos, vamos fazer uma escala em Salvador – ou seja, voltar atrás  - e pegar o único voo possível pra Natal. Meio arriscado, né? Depois daquele habitual suspense nas salas de embarque as partidas se confirmaram e a conexão em Salvador foi imediata. Às 19h já estamos no teatro Riachuelo, confirmando o som. Show beleza, plateia em delírio. Feliz Natal!

 

 

SÁBADO, 8H

Depois do café, escolher o leito no buzum-maravilha. Todos a bordo, a viagem até Recife é curta, pouco menos de 300km. Encaro de novo minha incapacidade de dormir em movimento, nenhum artista-estradeiro pode sofrer disso! A estrada passa pela janela, o ar condicionado chama um cobertor, travesseiros e… chegamos no hotel!

 

Claudio Venturini, na poltrona do outro lado do corredor – e sabedor da minha síndrome de Drácula desperto – dá risada:

- Você dormiu! E muito! Eu vi!

                Aliviado, me sinto um novo homem, pronto a enfrentar turnês sem fim…

 

 

SÁBADO, 20H

Que saudades eu estava desse teatro Guararapes, de Recife em geral. Vim aqui pela primeira vez na década de 50, passar férias na casa de amigos, em minha viagem inaugural de avião, num Constellation da Varig. Lembro que na poltrona ao lado minha tia Dedete desfiava um terço, apavorada, e minha mãe reclamava:

 

- Odete, para com essa rezação, você está deixando o Luiz Carlos com medo!

 

De outra vez, nos anos 90, tive que encarar a plateia e pedir desculpas pela ausência do Guarabyra, adoentado, no primeiro dia de uma temporada de fim de semana, que enfim acabou bem, com o Guararapes lotado. Mas minhas lembranças daqui remontam desde as férias de infância nos escorregas da praça do Derby às orquestras de metais com seus músicos precisos desenrolando os complicados frevos de Nelson Ferreira e cia..

 

Neste terceiro show nem precisamos passar o som, com os técnicos já tendo o mapa na ponta dos dedos. Antes do show reencontrei meu parceiro Nosly Marinho, um dos talentosíssimos cantores/compositores brasileiros injustamente fora do mainstream do show business. E depois recebemos um público caloroso. Esse é o nosso alimento, que faz desaparecer o cansaço e tira a vontade de sair correndo pro hotel.

 

 

DOMINGO, 9HS

Café rápido e buzum-maravilha de novo, trechinho curto de 120km até João Pessoa. A Paraíba é um celeiro musical: Zé e Elba Ramalho, Chico Cesar, Lucy Alves… põe mais gente aí! O Pedra do Reino é um teatraço, não deu trabalho na acústica. É a noite de despedida do Nordeste, será que vai dar tempo de mais um mergulhinho? Mas a atração está também na gastronomia e acabei por dar vantagem ao estômago, o que deixou o resto do meu corpo muito aborrecido pela falta de sal e ondas. Como que adivinhando esse conflito, São Pedro mandou chover e fiquei em paz comigo mesmo. A saída do show vai ser corrida, nós que moramos em BH não vamos poder sequer atender o público porque temos que voltar hoje à noite mesmo a Recife para pegar o único voo direto de volta. Escalas cansam mais que uma noite em claro.

 

 

SEGUNDA FEIRA, 3:30 da manhã

O voo GOL 1821 REC/CNF acolhe músicos e técnicos exaustos, depois de um breve e corrido tour-de-force pelo nordeste, que nos recebeu acima das expectativas. Consegui -de novo! – dormir um pouco. Peguei a van da locadora, aluguei o carro que vai me servir para o resto da mudança e cheguei finalmente em casa. Nessas gigs cada dia vale por quatro e a impressão que a gente tem é que entrou numa máquina do tempo: para quem ficou, passaram-se seis dias, para nós que fomos, uma eternidade. Cheguei em casa, abracei minha mulher e meu filho, que me perguntaram como tinham corrido as coisas. Só tive tempo de gemer um “ótimas” e me atirar no sofá, não sem avisá-los antes:

 

- Olha: o corpo chegou.

 

                Suspirei, fechei os olhos e murmurei, antes de apagar:

 

- Mas a cabeça ainda tá vindo aí.

 

 

 

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