Em nossa última oportunidade, vimos a importância dos fones referência. Porém existe, ainda, uma referência anterior e mais importante para a qualidade do trabalho de quem mixa: a nossa referência auditiva. Quando mixamos e fazemos ajustes de equalização, tomamos decisões sobre os filtros de EQ e sobre o nível que determinados elementos sonoros ocuparão na mix. Estas decisões não podem ser deixadas à sorte, ao acaso, nós as fundamentamos sobre algo que temos como referência. Por exemplo, como saber se o som de um instrumento tem boa qualidade, e não requer ajustes, ou se ele precisa de equalização para soar melhor? Este “melhor” nos revela que estamos comparando a sua sonoridade com uma referência ou padrão que temos armazenado na nossa memória auditiva e que pode servir como o alvo que desejamos alcançar por meio dos ajustes. De onde vem esta referência? Embora existam até pessoas que tem o chamado “ouvido referência,” elas não nasceram com uma coleção de sons pré-programados. Até mesmo a referência delas precisou ser “programada”, por meio da prática e estudo, com os sons que a foram compondo. E então elas se referem a essa “biblioteca”, consultando-a na memória, para compará-la com algo que lhes é apresentado pelos seus ouvidos.
Cabe aqui uma consideração importante. Somos responsáveis pela sonoridade de nossa mix e não apenas por fazer soar bem os elementos isolados em cada canal. Em outras palavras, deixar tudo soando maravilhosamente bem quando solado ou tocado sozinho, provavelmente não resultará numa mix final com a qualidade e clareza em que se ouve com nitidez cada voz e instrumento. Por quê? Porque em muitas situações, as bandas que mixamos não foram privilegiadas com um arranjo que dedicasse espaço para as frequências de cada voz ou instrumento. Quanto melhor for este arranjo, menos teremos que interferir com a equalização. O resultado é que instrumentos com tonalidades semelhantes acabam se sobrepondo e causando interferências por cancelamentos e somas de frequências que deixam bem diferente a sonoridade do conjunto dos instrumentos na mix, em relação aos mesmos tocados individualmente.
Neste caso, um recurso que temos ao nosso dispor e que devemos aplicar antes de alterar a EQ para reduzir o conflito de frequências, é o seu posicionamento no palco estéreo, dispondo os instrumentos em lugares diferentes por meio do controle de Pan. Porém como este posicionamento irá depender do clock da console, que em muitos casos não é de alta qualidade, e como existem sistemas de PA monofônicos em que isto não funciona, o mais comum será precisarmos aplicar este recurso que eu incluo dentro da EQ Artística que comentamos na nossa última publicação.
Obviamente, o texto não é o meio mais indicado para se ensinar esta técnica, mas como é a mídia em que estamos trabalhando, vou explicar o conceito que cada um precisará experimentar na prática, até mesmo porque isto irá variar conforme a composição da banda, do estilo e dos instrumentos que forem usados. A ideia é buscar abrir um espaço em que as frequências principais de cada elemento, cada instrumento ou voz, possam ser ouvidas sem ficarem sobrepostas por outros elementos com sonoridade semelhante na mesma intensidade. Por aqui se percebe que isto seria resolvido de forma muito mais eficiente no arranjo musical, em que cada elemento cresce e depois recua em momentos distintos da música, podendo desfrutar do domínio do espaço das frequências que produz sem concorrência com outros elementos da banda.
Que concorrência seria esta? Bem, já apresentei o conceito de que no som “menos em quantidade é mais em quantidade”, daí, quanto menor o número de vozes ou instrumentos ocupando simultaneamente a mesma faixa de frequências, melhor. Se você ainda não tem intimidade com as frequências produzidas por vozes e instrumentos, uma pesquisa por “instrument frequency response chart” trará algumas dezenas de gráficos com a extensão de frequências da maioria dos instrumentos. Vale lembrar que além das frequências fundamentais, os instrumentos produzem harmônicos de intensidade tipicamente menor mas que contribuem com a sua sonoridade.
Ao observar estes gráficos, pode inicialmente surgir um desespero, pois existe sobreposição de grande parte dos instrumentos e as vozes ficam encaixadas aproximadamente no meio! O que acontece é que estes gráficos apenas resumem a faixa de frequências que uma voz ou instrumento pode produzir. Cada instrumento terá suas características individuais de timbre que constituem a sua “personalidade” ou identidade sonora.
Para deixar isto bem claro, vamos fugir da mídia em texto por uns instantes. Se você tiver uma assinatura de um serviço de streaming de música, (Spotify, Apple Music, Amazon Music, Youtube Music, Deezer, Tidal), faça uma busca por: BWV 1007 Cello Prelude. BWV é a abreviação de Bach-Werke-Verzeichnis em alemão. Ele se refere a uma organização das obras de Bach feita em 1950 por Wolfgang Schmieder na Thematisch-systematisches Verzeichnis der musikalischen Werke von Johann Sebastian Bach (Catálogo Temático - Sistemático das obras de Johann Sebastian Bach). Neste preludio da BWV 1007, temos uma linda peça para violoncelo solo, sendo o violoncelo um dos instrumentos mais ricos em harmônicos.
No Spotify esta busca retorna umas 20 gravações. São gravações profissionais em selos de música clássica, que, por princípio, não admitiriam usar instrumentos de baixa qualidade. Elas são executadas por intérpretes de primeira linha como Yo-Yo-Ma. Existem óbvias variações de acústica, mas a microfonação de um celo costuma ser próxima, priorizando o som do instrumento. O resultado desta experiência é que podemos perceber a grande variação na sonoridade dos instrumentos que tocam este prelúdio em sol maior. Obviamente, existem variações da técnica dos músicos a serem consideradas, mas se você pegar as duas ou três gravações do mesmo Yo-Yo Ma, poderá perceber a nítida variação de sonoridade entre os instrumentos. E mesmo levando em conta haver uma pequena influência da assinatura sonora dos microfones, neste estilo e nível de gravação ela não deve ser muito significante.
Enfim, o propósito desta experiência é demonstrar que, mesmo observados os rigores de gravação dos selos de música clássica, mesmo com instrumentos de qualidade, tocados por músicos seletos, existem consideráveis variações de sonoridade de um instrumento para outro. Assim, não se pode generalizar, especialmente quando descemos do elevado nível técnico deste exemplo para os instrumentos, a acústica e a técnica musical em desenvolvimento da nossa realidade ao mixar. É previsível que cada instrumento terá a sua característica sonora que, aliada à técnica de quem o tocar, nos apresentará a sonoridade que buscaremos encaixar na mix, abrindo-lhe um espaço em que terá pelo menos uma porção do seu espectro de frequências mais audíveis.
Então como faremos isto usando os controles de EQ da nossa console? A ideia é escutar a sonoridade da banda, após acertamos a estrutura de ganho, para avaliar quais as frequências que podem ser atenuadas em um instrumento para não encobrir outro ou realçadas em um instrumento permitindo que sobressaia às frequências de outro que o encobre. Para isto usamos os nossos fones referência solando os canais e percebendo quais as frequências que mais caracterizam o timbre do instrumento, que poderiam ser reforçadas, por exemplo, e quais as frequências que não têm uma importância tão importante na clareza do que está sendo tocado e que seriam candidatas a serem atenuadas abrindo espaço para outro instrumento.
Aqui entramos um pouco na função de produtores, pois acabamos determinando o que será mais e menos ouvido. É claro que nosso propósito é deixar todos os elementos audíveis. Faremos estes reforços e estas atenuações seletivamente para que todos os elementos da banda possam desfrutar de, pelo menos, uma parte da sua sonoridade estar audível quando forem tocados simultaneamente. Volto a dizer que esta questão seria mais bem resolvida no arranjo musical, mas a realidade é que é infelizmente comum estarmos mixando em situações em que todos os elementos da banda tocam o tempo todo em regiões de frequências muito próximas. Já cheguei a pedir que um músico mudasse de oitava para dar auxiliar com a clareza e esta estratégia pode ser eficaz. Mas quando você tem, por exemplo, violão, guitarra e teclado, tocando na mesma pegada e frequências próximas às frequências principais do vocal em torno de 2kHz, não existe como criar espaço sem atenuar ou recuar alguns elementos e trazer outros à frente na mix.
Em época de Copa do Mundo, dizem que todo brasileiro se torna um técnico de futebol opinando sobre o que seria a sua solução para o sucesso. Felizmente para nós que mixamos, a pressão raramente é tão alta, com exceção de um fã ou outro que quer ouvir mais do seu músico preferido. Mas no contexto da igreja, e não apenas nela, podemos afirmar que, na maioria do tempo, o vocal deve ser o elemento em destaque. Ou seja, ele deve estar plenamente audível e inteligível. A maioria dos ouvintes não-técnicos perceberá se não conseguirem ouvir o vocal, já se um ou outro elemento entre os instrumentos deixar de ser audível em um momento ou outro, a importância não é tão grande. Como disse um engenheiro numa master class que interpretei, “é mais uma característica nossa, como técnicos ficarmos incomodados com uma ressonância de 400Hz na caixa da bateria.” Em outras palavras, se os ouvintes conseguirem ouvir a bateria sem microfonia, se houver clareza entre as peças delas e o som da caixa ou bumbo não estiver forte demais, já estará muito bom.
Vale abrir pontuar aqui que a sonoridade e audibilidade dos elementos da banda não depende apenas da nossa atuação na console. Existem limites para aquilo que conseguimos fazer e um resultado de qualidade nesta questão depende muito de os músicos cuidarem dos níveis que enviam para nós trabalharmos!
Então, a EQ Artística nos permite realçar e atenuar os elementos da mix para que todos sejam audíveis. Aplicando esta técnica, com a estrutura de ganho bem resolvida, ajustes mínimos nos faders conseguem tornar um instrumento audível se ele caiu momentaneamente abaixo dos demais. Reforçando que isto funciona desde que os músicos cooperem mantendo o nível do seu instrumento dentro do que foi passado na passagem de som.
Por fim, além do Pan e da EQ, existem os controles de dinâmica que podem ajudar a deixar os instrumentos audíveis. Mas por enquanto, vamos parar por aqui.